quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Elogio à diferença

HELOÍSA APONTA PARA A CONVIVÊNCIA ENTRE TRADIÇÃO E INOVAÇÃO. FOTO: MARINA CAVALCANTE
 
A professora, escritora e editora Heloísa Buarque de Hollanda ousou levar para o âmbito acadêmico temáticas periféricas ou marginais. Isso antes de teorias como os estudos culturais se popularizarem nas universidades brasileiras. Esse ímpeto traduz a personalidade inquieta e sensível dessa paulista radicada no Rio de Janeiro.

Hoje, dois temas pautam o trabalho da professora titular de Teoria Crítica da Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro: a cultura de periferia e os impactos das mídias digitais na produção de cultura. Sobre esses assuntos, Heloísa tratou em dois eventos promovidos pelo Núcleo de Formação do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura: o seminário "Novas políticas estéticas", no último dia 3, e a oficina "Crítica Hoje", dia 4.

Este blog conversou com Heloísa sobre aspectos desses temas. Confira trechos.

Professora, a senhora diz que, a partir de um certo momento de sua vida, a senhora foi inoculada pelo vírus da novidade. Queria que a senhora contasse como isso ocorreu. Até que ponto isso teve a ver com o quadro político da época?

Eu entrei na Universidade (Federal do Rio) não para estudar, mas para trabalhar, em 1965. Era um período de ouro. Entre 1964 e 1968, apesar de já ter havido o golpe (militar), a universidade era um celeiro de ideias e acontecimentos. Era um lugar quentíssimo. Então, em 1968, teve o AI-5 (Ato Institucional nº 5, que limitou as garantias civis), era o começo da minha carreira. Não conseguia mais ficar trabalhando. Todos os professores receberam uma lista do que não (se) podia falar. E era muita coisa que não podia falar! Ficava quase que difícil abrir a boca. Fiquei achando que aquele silêncio não podia ser tão completo. E aí saí trabalhando no que faço até hoje, que é microtendência – que a gente pode chamar de novidade. Mas a microtendência vem até antes da novidade: ela aparece e se dá certo vira novidade, se não dá a gente esquece.

O interesse que a senhora demonstrou pela poesia marginal, ali pelos anos 1970, foi uma das primeiras áreas nas quais a senhora trabalhou nesse sentido, não é?

Foi a primeira coisa, nesse tipo de tendência. Eram os poetas que usavam mimeógrafo... A ditadura não queria saber de poesia. Ela estava muito atenta a jornal, a televisão, que são formadores de opinião, mas a coisa da poesia ninguém ouve, lê ou quer. É um território que não pagava o preço do censor, não tinha potencial nenhum. E o engraçado é que essa cena cresceu e ficou uma onda, um tsunami de poesia no Rio de Janeiro, que era onde eu estava, pelo menos. Havia muitas publicações em mimeógrafos, em pequenas gráficas. Livros feitos pelos próprios poetas. Depois eles eram vendidos de mão em mão. Depois isso foi crescendo. Eram jovens universitários, então era exatamente quem estava sendo tolhido pelo AI-5. Foi legal porque eles fizeram uma coisa que está acontecendo de novo com as culturas de periferia: sempre vincular a poesia à música. Naquela época era o rock. A poesia parava e tinha um show de rock. Era um show que pegava cada vez mais gente, até formar multidões. Porque tinha essa coisa do rock-poesia, do teatro alternativo... Asdrúbal Trouxe o Trombone (grupo teatral carioca), que era um teatro bem alternativo, carregou um monte de poetas juntos. Então era uma geração que fazia várias coisas, e a poesia era uma delas. A poesia se integrou a um sentimento emergente, digamos. É o único testemunho que se tem da geração AI-5. Se você for ler os poemas, são cheios de pistas. Tem uma paranóia que rola. Esse clima era de paranóia e de falta de informação.

Os protagonistas dessa microtendência que a senhora relata respondiam a um momento político do país. Os protagonistas das microtendências de hoje respondem a quê?

Eles respondem à globalização. Que eu acho que tem duas, pelo menos, e tenho estudado as duas. Uma é a periferia, as novas vozes da periferia. Nos anos 80, mudamos de uma sociedade de produção para uma sociedade de consumo. Aquilo começa a abrir espaço para a diferença, porque são nichos de mercado. Começa a ter atenção aos gays, às mulheres, como consumidores. Mas as periferias nunca tiveram voz. E não é que não tivessem cultura. Sempre tiveram muita cultura, o que não havia era visibilidade. E não tinham o apoio internacional que tem hoje. Hoje, a chave que une todos os jovens pobres, pretos, é o rap. E o rap é um gênero transnacional. Acusam o rap de ser cópia, de não ser local, mas vejo misturas como a do rap e do maracatu, em Recife, que são sensacionais. Existe essa coisa das alianças.

Uma das conseqüências sérias, em termos de relações sociais, que a cultura digital institui, é a capacidade que as pessoas ganham em responder a estímulos de maneiras que não aconteciam antes, nos mass media, por exemplo. Posso comentar um vídeo, entrar numa rede social e conversar com figuras de autoridade. Como a senhora avalia esse impacto em termos da própria atividade dos artistas? Isso muda alguma coisa nas sensibilidades?

Acho que está um pouco cedo (para avaliar o impacto), mas a gente precisa dividir. Há o nativo digital, ou pelo menos gente que pegou os anos 90 em formação. Os  nativos têm outro tipo de atenção, uma atenção de articulação. Você gerencia sua atenção, digamos assim. O que é diferente. Você faz várias coisas ao mesmo tempo, e não está disperso. A minha neta é um exemplo. Ela é uma excelente aluna. Faz dever jogando e vendo televisão, e tem nota 10. É um outro mecanismo de atenção, que a gente não sabe... Acho que é um pouco cedo para a gente saber onde isso vai parar, porque essa geração precisa ficar adulta, pelo menos. Eu fui para uma mesa redonda de escritores, em Curitiba, e eles tinham em média 60 anos. O que eles falavam mal... Isso é uma questão hormonal, não é cultural nem tecnológica! (ri) Eu não seguro essa onda! Não adianta eu dizer: “não é a mesma coisa que ler um livro...” Vai ser a mesma coisa para a minha neta. Ela vai escolher o suporte dela.

Como, num fazer docente, os educadores podem se colocar diante dessas questões?

Vai ter uma zona de conflito durante um tempo grande. Até os educadores saberem mexer no computador. Outro dia, eu li que o governo estava dando computadores para escolas e as educadoras estavam trancando para não quebrar. Não é para “não quebrar”, é porque elas não sabem usar e a garotada sabe. É uma situação muito constrangedora para o professor, ele fica sem autoridade. Tem que esperar o tempo do professor. Há mil projetos, para dar computador, mas esses professores não sabem qual é a experiência dessa geração mais jovem. 

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