sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Desafiando dicotomias e acomodações

RAUL DIZ QUE PROFESSORES SÃO MAIS PROBLEMÁTICOS QUE ALUNOS
FOTO MARINA CAVALCANTE


Por Rafael Rodrigues

A repetição e o mesmo. O conforto e a angústia. O passado e o presente. O real e seus duplos. Parece redutor querer enfileirar as experiências de mundo em pares dicotômicos. Mas, enquanto o professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Raul Antelo se aventurou por esses opostos, brotou uma leitura complexa, sem concessões, da batalha entre arte e ciência (uma outra dicotomia).

Antelo buscou em Flávio de Carvalho e outros luminares dos anos 30, matrizes capazes de provocar a discussão. Mas soube, como um pêndulo, voltar ao presente - sem esquecer de um passado que é sempre residual, em sua opinião. Costurando idas e vindas no tempo, no espaço e nos fluxos de consciência, ele nos concedeu a entrevista a seguir, em que discute o lócus universitário, entre outros assuntos.

Pergunta - Sobre sua experiência docente na Universidade Federal de Santa Catarina, que caminhos você tem conseguido abrir para evitar que o ensino de Literatura se isole e se repita?

Raul Antelo - Eu separaria em duas áreas os problemas. Há problemas com os colegas e com os alunos. Acho mais problemáticos os colegas que os alunos. Os colegas têm uma prevenção congênita contra tudo o que seja novo. Acham-se muito bem instalados num determinado domínio, não quero novidades, dificilmente ambicionam ler a biblioteca do vizinho, se defendem diante do mundo que muda a uma velocidade superior à possibilidade deles mudarem. Os estudantes muitas vezes são permeáveis a esse tipo de argumento utilizado pelos colegas. E, de início, podem até dizer: "minha formação é outra, o senhor tem um método diferente, não fui educado para isso". Mas a experiência tem me demonstrado que gradativamente essas resistências vão caindo e que, por outro lado, os estudantes não são bobos. Sabem que o mundo tá mudando, que a instituição não os forma competentemente. Tem consciência de onde "roubar". Que se estudarem com o professor que utiliza o mesmo método há décadas não vão poder roubar grande coisa. Nos últimos anos, tenho tido um fenômeno muito curioso, que é acolher alunos que completaram uma formação mais convencional, como em Direito. E constataram que não era isso que queriam, um futuro profissional que fosse apenas uma aplicação mecânica de leis, regras e ditames. E encontram na Teoria Literária uma disponibilidade para pensar o presente que também não encontram na Filosofia. Então, alunos da Filosofia interessados em autores contemporâneos, ou do Direito e outras áreas, tem vindo aos cursos de Teoria Literária a acabam ficando. Tiram passaporte na Teoria Literária e abandonam a área de formação. Em certo sentido é muito bom, pois acabamos tendo um conjunto de estudantes com uma formação heterogênea.

Pergunta - Atravessadas por várias matrizes, digamos assim.

Raul - Várias linhagens, várias tradições, várias línguas. O "antropologuês", o "direitês", o "historiês" (ri). Isso que me interessa. Uma vez perguntaram ao (Jacques) Derrida como ele definiria desconstrução. E ele se saiu com essa: "mais de uma língua". A ideia de você não ser fiel à língua nativa, à língua do lugar... Porque não há naturalidade na linguagem. Está sempre se criando. Como a condição contemporânea é densa, difícil e etc., você tem que ter elasticidade para absorver as outras línguas que muitos colegas não ouvem, não reconhecem linguagens propriamente ditas.

Pergunta - A instituição tem algum peso nesse diálogo com o corpo discente? Tenta impor alguma coisa, ou não?

Raul - A instituição está tão esvaziada... quer impor, mas não consegue. Na minha trajetória, constato que tenho dois tipos de autoridade: a autoridade conferida pelos concursos, etc. Formalmente, sou professor titular, mas isso não me garante liderança entre os alunos. Há outra autorização que passa pela minha capacidade de ler, de elaborar, de produzir discurso, que não me é dada pela instituição, mas pelos alunos. Os alunos percebem quem está elaborando problemas, quem tem a coragem de abordar uma questão sem resposta, e nesse sentido há uma confiança, uma confiabilidade, uma transferência - um conceito psicanalítico. Os alunos conseguem fazer transferência comigo.

Pergunta - Na palestra, você costurou com habilidade uma discussão sobre arte versus ciência. A arte como o in-existente (ou o não pensável). Havia muitas referências dos anos 30 (do século 20). Então, me ocorreu que temos uma discussão desse porte colocada desde os anos 30, e que não se esgotou. Isso não te desanima um pouco? Em 70 anos passados, qual o avanço?

Raul - Não acredito no avanço. Não acredito no avanço. Por sinal, o nome da primeira instituição em que apresentei um trabalho pela primeira vez, em 1973 - e naquela época já me parecia horripilante - é Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência. Nunca acreditei no progresso da ciência, já com 23 anos, em 1973. Nesse sentido, tenho uma compreensão da história muito mais periódica e cíclica. Sou mais nietzscheano ou borgeano, no sentido que a "Biblioteca" é periódica e cíclica... (ri) Acho que o passado não se encerrou. Está sempre passando. E passa por nós, se atualiza, e por ser atual chamamos de presente. E há sempre o resíduo desse passado. Não termina de passar. E como fica, como matéria pendente, alimenta nossas utopias de realizações - que na falta de melhor rótulo, chamamos de futuro. Acho que somos passado, no sentido que somos "passando". O importante é que o tempo passa por nós, porque se isso acontece temos condições de reabrir o jogo constantemente. Se nos defendemos e afirmamos que há um progresso da ciência, o passado já passou, pronto. Não me afeta e não tenho por que saber qual era o debate nos anos 30. Tenho que saber qual era o debate nessa década e nas outras, tenho que saber onde o debate ocorre... Nesse sentido... nada me é alheio. Prefiro pensar o presente como contemporâneo, como "tempo com", com outros tempos. Não é o final da história. É um tempo em que se acumulam outros tempos e que por efeito desse acúmulo, se repete. A repetição nunca é idêntica ao antecedente. E é justamente na diferença que uma repetição estabelece com seu antecedente, que está o x da questão, a meu ver. Aí reside a carga, a força emocional, de sensibilidade, de pathos, de intensidade. É isso que me permite continuar pensando.

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