BURNETT EXPÔS TRABALHO INÉDITO NO SEMINÁRIO
FOTO MARINA CAVALCANTE
Por Rafael Rodrigues
O professor da Universidade Federal de São Paulo e músico Henry Burnett tem buscado em fontes tão díspares quanto o alemão Theodor Adorno e o brasileiro Mário de Andrade a explicação para um fenômeno que está debaixo de nossos narizes - e sobretudo, dentro de nossos ouvidos: a hegemonia da música de consumo em nosso país.
A resposta definitiva ainda não chegou, mas algumas pistas vão delineando um cenário complexo. Um exemplo: diferente de outras nações, o Brasil (ainda) conserva uma cultura popular, enraizada no interior do País e matéria-prima de apropriações diversas.
"É como se fosse uma espécie de patrimônio imaterial que precisa ser protegido. E aí me parece que existe um equívoco muito grande. Revelar a cultura popular é também desconstruí-la, destrui-la, reduzi-la a um objeto primitivo de observação da alta cultura", diz Burnett, que apresentou a palestra "Adorno e Mário de Andrade: duas visões da educação pela música" na manhã desta terça-feira (3), no Seminário Arte, Invenção e Experiências Normativas. Confira alguns momentos da conversa.
Pergunta - Como a sua experiência com música lhe ajudou a pensar os temas que você trata na academia: o status da música popular, a música de entretenimento?
Henry - Trabalho com música há bastante tempo, na prática, antes de qualquer perspectiva de trabalho acadêmico. A música veio em primeiro plano, aos 16 anos já compunha, mesmo que de uma forma diletante. A filosofia veio bem depois. Feito um balanço dos últimos 20 anos, posso dizer que o músico é uma espécie de antídoto contra o que a universidade, a filosofia e a academia pode conter de aprisionamento. Do pensamento, das amizades, das ideias.
Pergunta - As duas coisas (a música e a academia), em algum momento pareceram incompatíveis para você.
Henry - Foi uma grande dificuldade para mim. Posso dizer sem nenhuma vergonha que estive em crise por pelo menos uma década, achando que o professor assassinaria o compositor. Passada a tormenta, posso dizer hoje que uma coisa complementa a outra de modo inequívoco e, a essa altura, inseparável.
Pergunta - Até que ponto esses objetos de estudo que você elegeu - objetos artísticos, que dialogam com a esfera da subjetividade - se prestam a esse enquadre científico, que a academia exige?
Henry- Eu compliquei um pouco a minha própria vida. Estudar a canção popular como objeto científico, digamos assim, como objeto passível de análise, dentro da universidade, no Brasil, não é uma coisa muito simples de ser feita, por incrível que pareça. Principalmente na filosofia, eu diria. Hoje em dia, a literatura, a musicologia, a sociologia, a história, tratam do tema com muita seriedade. Mas a filosofia da arte, a estética, que são os ramos da filosofia (que lidam com o tema) são muito reticentes com esses objetos. É certamente muito mais simples para um filósofo profissional estudar, digamos, a Terceira Crítica de Kant do que o cancioneiro brasileiro, que parece não ser um objeto digno da filosofia. É uma postura um pouco hierárquica. Como isso não faz sentido nenhum para mim, então eu talvez tenha aberto uma espécie de trilha. Depois que comecei a estudar a canção popular, através de Nietzsche, de Adorno, de Mário de Andrade, senti que havia uma demanda reprimida de alunos interessados em estudar os processos composicionais, mas não sabiam nem onde nem como. E me procuram com muita satisfação, como se houvesse uma necessidade guardada e não houvesse onde canalizar tudo isso.
Pergunta - Como você concebe a cultura popular, que segundo você permanece e "respira" no Brasil, tendo em vista as novas tecnologias que vão midiatizando todo tipo de relação? Você acha que a cultura popular passa ao largo disso ou vai sendo incorporada nesse fluxo?
Henry - Essa é a pergunta mais difícil. O que a gente consegue perceber é que a cultura popular permanece viva no Brasil, ainda que seja em lugares ermos do país. Eu estou falando da cultura popular atrelada à colheita, à religiosidade popular, ou seja, em relação a tudo aquilo que o Mário de Andrade vislumbrou em 1938, na década que ele viajou pelo Norte e Nordeste, e permanece vivo. Existe hoje uma espécie de apropriação desse tipo de produção. É como se fosse uma espécie de patrimônio imaterial que precisa ser protegido. E aí me parece que existe um equívoco muito grande, de revelar a cultura popular dentro de um esquema consciente, industrial. Revelar a cultura popular é também desconstruí-la, destrui-la, reduzi-la a um objeto primitivo de observação da alta cultura. Isso é um equívoco em que o próprio Mário incorria àquela altura. Então, o destino da cultura popular no Brasil é absolutamente insondável.
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